terça-feira, 4 de outubro de 2011

Uma necessidade epistemológica: a distinção entre paisagem e espaço

A palavra paisagem é frequentemente utilizada em vez da expres­são configuração territorial. Esta é o conjunto de elementos naturais e artificiais que fisicamente caracterizam uma área. A rigor, a paisagem é apenas a porção da configuração territorial que é possível abarcar com a visão. Assim, quando se fala em paisagem, há, também, refe­rência à configuração territorial e, em muitos idiomas, o uso das duas expressões é indiferente.
Paisagem e espaço não são sinónimos. A paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que repre­sentam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são essas formas mais a vida que as anima. (SANTOS.1999, p. 83)
A paisagem se dá como um conjunto de objetos reais-concretos. Nesse sentido a paisagem é transtemporal, juntando objetos passados e presentes, uma construção transversal. O espaço é sempre um pre­sente, uma construção horizontal, uma situação única. Cada paisagem se caracteriza por uma dada distribuição de formas-objetos, providas de um conteúdo técnico específico. Já o espaço resulta da intrusão da sociedade nessas formas-objetos. Por isso, esses objetos não mudam de lugar, mas mudam de função, isto é, de significação, de valor sistémico. A paisagem é, pois, um sistema material e, nessa condição, relativamente imutável: o espaço é um sistema de valores, que se transforma permanentemente.
Segundo Santos(1999, p. 83) O espaço, uno e múltiplo, por suas diversas parcelas, e através do seu uso, é um conjunto de mercadorias, cujo valor individual é função do valor que a sociedade, em um dado momento, atribui a cada pedaço de matéria, isto é, cada fração da paisagem.
O espaço é a sociedade, e a paisagem também o é. No entanto, entre espaço e paisagem o acordo não é total, e a busca desse acordo é permanente; essa busca nunca chega a um fim.
A paisagem existe através de suas formas, criadas em momentos históricos diferentes, porém coexistindo no momento atual. No espa­ço, as formas de que se compõe a paisagem preenchem, no momento atual, uma função atual, como resposta às necessidades atuais da so­ciedade. Tais formas nasceram sob diferentes necessidades, emanaram de sociedades sucessivas, mas só as formas mais recentes correspondem a determinações da sociedade atual.
A paisagem é história congelada, mas participa da história viva. São as suas formas que realizam, no espaço, as funções sociais. As­sim, pode-se falar, com toda legitimidade, de um funcionamento da paisagem, como, aliás, foi proposto por C. A. F. Monteiro (1991). Se o conhecimento, como diz Whitehead (1938, p. 225), "nada mais é que a análise do funcionamento dos funcionamentos", então o conhecimento da paisagem supõe a inclusão de seu funcionamento no funcionamento global da sociedade. A paisagem é testemunha da sucessão dos meios de trabalho, um resultado histórico acumulado. O espaço humano é a síntese, sempre provisória e sempre renovada, das contradições e da dialética social. O que nos interessa aqui mais de perto é que isto nos pode oferecer uma solução para o nosso problema epistemológico.
Uma casa vazia ou um terreno baldio, um lago, uma floresta, uma montanha não participam do processo dialético senão porque lhes são atribuídos determinados valores, isto é, quando são transformados em espaço. O simples fato de existirem como formas, isto é, como paisagem, não basta. A forma já utilizada é coisa diferente, pois seu conteúdo é social. Ela se torna espaço, porque forma-conteúdo.
Segundo Santos (1999, p. 88) Não existe dialética possível entre formas enquanto formas. Nem, a rigor, entre paisagem e sociedade. A sociedade se geografiza através dessas formas, atribuindo-lhes uma função que, ao longo da história, vai mudando. O espaço é a síntese, sempre provisória, entre o conte­údo social e as formas espaciais. Mas a contradição principal é entre sociedade e espaço, entre um presente invasor e ubíquo que nunca se realiza completamente, e um presente localizado, que também é passado objetivado nas formas sociais e nas formas geográficas en­contradas.
Quando a sociedade age sobre o espaço, ela não o faz sobre os objetos como realidade física, mas como realidade social, formás-conteúdo. isto é, objetos sociais já valorizados aos quais ela (a sociedade) busca oferecer ou impor um novo valor. A ação se dá sobre objetos já agidos, isto é, portadores de ações concluídas mas ainda presentes. Esses objetos da ação são, desse modo, dotados de uma presença humana e por ela qualificados.
A dialética se dá entre ações novas e uma "velha" situação, um presente inconcluso querendo realizar-se sobre um presente perfeito. A paisagem é apenas uma parte da situação. A situação como um todo é definida pela sociedade atual, enquanto sociedade e como espaço.
Em cada momento, em última análise, a sociedade está agindo sobre ela própria, e jamais sobre a materialidade exclusivamente. A dialética, pois, não é entre sociedade e paisagem, mas entre sociedade e espaço. E vice-versa.
Pensar sobre essas noções de espaço pressupõe considerar a compreensão subjetiva da paisagem como lugar: a paisagem ganhando significados para aqueles que a vivem e a constroem. Segundo os PCN’s (1998, p.78):
As percepções que os indivíduos, grupos ou sociedades têm do lugar nos quais se encontram e as relações singulares que com ele estabelecem fazem parte do processo de construção das representações de imagens do mundo e do espaço geográfico. As percepções, as vivências e a memória dos indivíduos e dos grupos sociais são, portanto, elementos importantes na constituição do saber geográfico.
Assim, o estudo de uma totalidade, isto é, da paisagem como síntese de múltiplos espaços e tempos deve considerar o espaço topológico — o espaço vivido e o percebido — e o espaço produzido economicamente como algumas das noções de espaço dentre as tantas que povoam o discurso da Geografia.

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